domingo, 9 de agosto de 2009

Uma tarde na Cracolândia: "tio, me dá dois contos de pedra"

O psicólogo Thiago Calil coordena um projeto de “redução de danos” junto a usuários de crack no centro de São Paulo. O trabalho de campo, na Cracolândia, consiste em orientar os viciados sobre os riscos à saúde envolvidos no uso da droga. Além de folhetos, os usuários recebem piteiras de silicone, manteiga de cacau e preservativos. O projeto conta, no momento, com apoio da Secretaria de Saúde do Estado de São Paulo.

Mauricio Stycer, repórter especial do iG


Mauricio Stycer/iG
Thiago Calil e Jorge Ferreira Moreira, do É de Lei

Thiago Calil e Jorge Ferreira Moreira, do É de Lei

Os viciados fumam o crack em cachimbos feitos com antenas de carro. O metal, quente, provoca feridas nos lábios. Passando o cachimbo de boca em boca, a chance de transmissão de doenças cresce muito. Daí o projeto de distribuição de piteiras, para uso individual, e manteiga de cacau, para evitar o ressecamento dos lábios e diminuir o surgimento de ferimentos.

Da mesma forma que a distribuição de seringas para viciados em drogas injetáveis, de forma a evitar a contaminação pelo vírus HIV, a ajuda aos viciados em crack é um trabalho polêmico, que a ONG É de Lei desenvolve já desde 2004, quando o drama da Cracolândia começou a ganhar dimensão incontrolável.

Antes de distribuir piteiras, o É de Lei, com o apoio do Ministério da Saúde, testou um programa de troca dos cachimbos de metal por um de madeira, de melhor qualidade, com o mesmo objetivo de tentar diminuir os ferimentos nos lábios dos viciados. O projeto fracassou porque um resíduo do crack, que é raspado depois do uso, saía junto com a madeira do cachimbo, levando os usuários a preferirem o de metal.

Na segunda-feira, 3 de agosto, a reportagem do iG acompanhou o trabalho de campo de Thiago Calil, na Cracolândia. Thiago tem 27 anos e trabalha em dupla, sempre, com Jorge Ferreira Moreira, 58 anos, desde 1984 envolvido em projetos sociais com pessoas que vivem na rua.

Encontro-os na sede da ONG, numa salinha na Galeria Presidente, no centro de São Paulo. Como eles, logo visto uma camiseta da É de Lei, numa cor berrante (abóbora), com o símbolo da instituição estampado à altura do coração. O objetivo é chamar a atenção mesmo – tanto dos usuários quanto da polícia – que eles estão ali a trabalho.

Calil e Moreira ainda não haviam lido o “Estadão” daquela segunda-feira, que trazia uma entrevista com Andrea Matarazzo, secretário das Subprefeituras de São Paulo e um dos idealizadores do projeto de reurbanização do centro da cidade, cujo alvo declarado, entre outros, é acabar com a Cracolândia. Em resposta à pergunta se “é a favor da política de redução de danos”, Matarazzo afirmou ao jornal:

“Acho que é uma das alternativas, mas não como vinha sendo feito. Tinha uma ONG que levava um estojinho com seringa, cachimbo, água destilada e manteiga de cacau e distribuía para as crianças. Isso é um absurdo”.

Calil e Moreira carregam estojinhos com piteiras e manteiga de cacau. Também portam folhetos sobre prevenção de doenças transmissíveis e preservativos. Cruzamos a avenida Ipiranga e andamos pela avenida Rio Branco. Ao longo do caminho, vemos pessoas enroladas em mantas e cobertores dormindo embaixo de marquises e em pontos de ônibus.

AE
Presença policial na Rua Helvétia, no centro de São Paulo, em foto de julho de 2009
Presença policial na Rua Helvétia, no centro


São 16h30. Eles comentam que desde o início de uma nova ação da Prefeitura de São Paulo, há um mês, com o objetivo de intensificar a repressão ao consumo de crack e tentar retirar os usuários da rua, os viciados estão mais dispersos na região.

“Recolhem os caras na Cracolândia, levam para um abrigo, dão banho e soltam ele lá. Daí o cara passa o dia voltando para o Centro”, diz Calil.

Entramos na avenida Duque de Caxias e vamos até a praça Julio Prestes. De lá observamos uma concentração de carros da Polícia Militar, estacionados em frente à Sala São Paulo. Contornamos a praça, passamos pela antiga Rodoviária, desapropriada pelo Estado. Reflexo da ação da policia, o local, um dos pontos de encontro dos usuários de crack, está vazio.

Caminhamos pela alameda Cleveland, entramos na alameda Glete e dobramos à direita na alameda Barão de Piracicaba. As ruas ainda ostentam os nomes que remetem à época áurea do bairro de Campos Elíseos, mas o que vemos são apenas sobrados mal cuidados ou abandonados, transformados em cortiços, e muitas pessoas mal vestidas, vagando pelas ruas, assustadas ou perdidas, enroladas em mantas e cobertores.

Na Barão de Piracicaba encontramos uma concentração de gente. Cerca de 40 usuários fumam e negociam pedras de crack encostados junto a dois sobrados. “Me dá dois contos de pedra”, pede uma menina a Calil, confundindo-o com um traficante. “Eles são da saúde”, avisa um outro, que já os conhece.

“Tio, me dá a manteiguinha”, pede um garoto, não mais que 13 anos, a Moreira. Calil agacha-se para conversar com um homem, de cerca de 30 anos. Tenta convencê-lo a visitar o centro de convivência da É de Lei, para receber mais informações sobre os riscos do crack. “Estou aqui só de passagem”, ele diz. “Meu lance é muamba”, continua. O homem vende cachimbos, feitos de pedaços de antena e plástico, para os usuários.

Há pessoas de todas as idades no local. Homens, mulheres, idosos, jovens e crianças. Duas mulheres grávidas consomem crack. “Estou há duas semanas sem usar”, uma dela diz, nitidamente sem graça de ser vista ali, fumando crack.

Moreira aproxima-se de uma mulher mais velha, com o seu kit. Ela aparenta ter 60 anos. Aceita a manteiga de cacau, mas recusa a piteira. Tira um objeto do bolso, mostrando que já tem a sua. “TB”, ela diz.

“TB” quer dizer “tuberculose”. A mulher quis informar a Moreira que utiliza a piteira para evitar a doença. “São retornos como esse que me animam”, diz depois Moreira. “Sei que isso é apenas meio tijolinho numa construção, mas se o trabalho tiver continuidade...”, suspira.

Recostado numa bicicleta, um garoto de não mais que 15 anos negocia crack. Mostra pequenas pedras na mão e cobra R$ 5. Um homem mais velho tenta vender restos de uma pedra por R$ 2.

Um usuário aproxima-se para conversar. Diz que tem 38 anos e um filho de 17. “Não quero ver um neto meu aqui”, fala. Ele critica a distribuição de marmitas com alimentos para os mais necessitados na região. “O pessoal vende a marmita. Também vende os cobertores. Pra comprar pedra”.

Moreira e Calil reconhecem que os preservativos que distribuem também podem acabar servindo de moeda de troca nos comércios que ocorrem nas ruas da Cracolândia. Alguns usuários nem aceitam a camisinha. “Minha relação é com ela (a pedra)”, diz um.

Começa a cair água do sobrado onde estão concentrados os usuários de crack. Eles são obrigados a se movimentar. Saem andando pela Barão de Piracicaba. Estamos bem na esquina da rua, com a Alameda Northman quando um carro da Guarda Civil Metropolitana chega a toda velocidade, com a sirene apitando.

Três policiais saem do carro com as armas apontadas para nós três. Gritam para encostarmos na parede e não nos mexermos. Em poucos segundos, no entanto, constatam o equívoco. “Pensei que vocês eram traficantes”, diz um deles. Pedem desculpas, educadamente, e voltam para o carro.

“Já levei muitas batidas, mas nunca vi o buraquinho do revólver apontado para a minha cara”, conta Calil. Passado o susto, seguimos em direção à rua Guaianases, do outro lado da avenida Duque de Caxias.

Um homem enrolado num cobertor passa por mim reclamando. “Não joga água em mim, tia. Sou cliente”. Ele se dirige a uma senhora que mantém um pequeno comércio na rua. “Por isso mesmo”, responde ela, justificando por que, para afugentá-lo, jogou água em sua direção.

No caminho, perto da Estação da Luz, um carro da Polícia Militar aproxima-se de um grupo de usuários. Nervoso, um PM desce da van com o cassetete na mão e grita: “Só quero pegar um!!!” Como moscas, os usuários saem correndo e se espalham.

Alcançamos a rua Guaianases. São 18h e as lojas que vendem autopeças estão começando a fechar. O ponto é muito frequentado por usuários de crack, mas anda com menos movimento devido à repressão policial e dos próprios lojistas.

O segurança de uma loja caminha com um porrete de madeira na mão e, para assustar os viciados, bate violentamente com a arma na grade de uma loja já fechada. Calil e Moreira param para conversar e atender alguns usuários. Uma delas conhece-os tão bem que, olhando para mim, pergunta: “você é novo, né?”

Neste momento, Moreira encontra Danilo (nome fictício), um garoto de rua, hoje com mais de 20 anos, que ele conhece já há 12, 15 anos. “A primeira vez que eu vi o Danilo foi num SOS Criança. Ele tinha menos de 10 anos. Foi parar lá porque estava abandonado, não tinha pais”, conta Moreira. “Depois, foi passando de abrigo em abrigo, indo pra rua, voltando pra abrigo”, prossegue. “Uma vez, ele estava com a perna quebrada, quando o encontrei. Não aceitou atenção. Falou que prefere a rua”.

Emocionado, enquanto voltamos para a sede do É de Lei, Moreira continua. “E agora, o que vamos fazer com esses meninos?”, pergunta. “O mínimo é saber que está vivo, está conseguindo se manter vivo. Mas até quando? E como?”

AE
Usuários de drogas se reúnem na praça Júlio de Mesquita, centro de São Paulo, em foto de julho de 2009

Usuários de drogas se reúnem na praça Júlio de Mesquita,


Chegando à sede, conversamos sobre o trabalho de campo. “Nosso objetivo é fomentar o auto-cuidado no local de uso. É um trabalho lento e demorado”, diz Calil. “O crack provoca uma inversão de valores. O usuário deixa de lado todas as outras esferas da vida dele, como saúde e higiene, e só se preocupa com o crack. Mudar essa cultura no local de uso é muito difícil.”

O psicólogo tem consciência que o programa de redução de danos “é um complemento, uma alternativa, ao tratamento”. Mas acrescenta: “se o usuário não quer parar, não adianta internar. Podemos ajudar mostrando ao usuário que não quer parar que aquilo está fazendo mal.”

Calil percebe a dificuldade em fazer o seu trabalho ser compreendido. “Meus pais, mesmo, demoraram a entender o que eu faço. O preconceito que a gente mais enfrenta é acharem que redução de danos é um incentivo ao uso. Não é”, diz.

Em 2008, o É de Lei fez 1.797 atendimentos de campo. Distribuíram 2.358 protetores labiais e 1.332 piteiras. “É difícil quantificar os resultados do trabalho”, diz Calil. “Mas vejo pequenas coisas que fizemos dar resultado. É um trabalho de formiguinha mesmo”.

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